Educação é a chave para as questões do trânsito, afirmam pesquisadores
Especialistas da Uepa analisam o agravamento de infrações de trânsito e apontam a preponderância de comportamentos individualistas e da "cultura da correria" como principais atores nessa degradação

Era manhã da última quinta-feira, 20 de fevereiro. Dona Maria Auxiliadora aguardava na faixa de pedestres para cruzar a avenida Independência, na Região Metropolitana de Belém (RMB), um exercício cansativo e recorrente naquele local, onde muitos motoristas escolhem ignorar o direito do pedestre. Finalmente um motociclista percebe a presença de dona Maria Auxiliadora e para, sinaliza para os outros veículos, que também freiam. Com as dificuldades impostas pelos seus 69 anos e pensando estar segura na travessia, dona Maria Auxiliadora a inicia, mas o curto trajeto é interrompido por um motociclista, que indiferente às regras de trânsito, atropela dona Auxiliadora e a mata na hora. Ele estava embriagado e ela jamais verá sua família novamente.
Em toda a RMB, a pressa, a irresponsabilidade e o individualismo no trânsito colocam vidas em risco e desafiam o convívio social todos os dias. Motoristas e pedestres parecem, cada vez mais, ignorar as regras, a menos que a punição esteja à vista. O sinal vermelho, a faixa de pedestres e outras normas que deveriam garantir a segurança de todos são frequentemente desrespeitadas, revelando um “relaxamento com as leis", como apontado pela professora Diana Lemes, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Pedagogia em Movimento (Geppem), do Centro de Ciências Sociais e Educação (CCSE) da Universidade do Estado do Pará (Uepa) que desenvolve pesquisas voltadas para a educação no trânsito.
Lemes destaca que o trânsito, de modo geral, se baseia em três pilares importantes: educação, engenharia de tráfego e fiscalização, sendo o primeiro ainda pouco trabalhado no Brasil. “Nós precisamos educar a sociedade para esse comportamento humanizado do trânsito. Onde há respeito, gera respeito. Onde há gentileza, gera gentileza". Ela complementa que a gestão pública deve ofertar vias públicas adequadas em termos de sinalização, de mobilidade, não só para o veículo, o condutor, mas também para o pedestre e o ciclista. “Temos a necessidade de uma engenharia de tráfego humanizada e inclusiva, que considere as necessidades de todos os usuários, incluindo pessoas com deficiência. A fiscalização deveria entrar como último recurso, atuando de forma educativa e não apenas punitiva”, conclui.
Crise civilizacional - Mario Tito Almeida, filósofo, internacionalista e professor da Uepa, observa que o desrespeito às regras de trânsito é um sintoma de uma crise civilizacional mais ampla. Segundo ele, vivemos em uma espécie de "mundo da correria, do corre-corre, da busca de meta, dos resultados", o que leva ao individualismo exacerbado e à crise ética.
As pessoas sabem das regras, mas colocam a liberdade individual acima da vida em sociedade, dificultando a convivência e o respeito às individualidades. "Então é um sintoma, não apenas no trânsito, é um sintoma de uma crise muito maior. Como é que a gente consegue que essas leis não sejam violadas? Quando eu consigo criar uma cultura do pensar no outro, da cooperação, da percepção do outro como um sujeito de direitos", aponta. Ele argumenta ainda que a cultura punitivista pode até trazer resultados no início, mas as leis continuarão sendo violadas se não houver uma mudança na cultura.
Nesse contexto, o investimento em educação se torna a principal ferramenta para reconstruir a confiança, que se quebrou na medida em que percebemos que não há mais aquele valor comum. “Afinal, eu só sou com os outros, sem o contato com o outro, eu não existo. O cuidado com o próximo é essencial para o funcionamento do coletivo", ressalta. Tito explica que ser social, na perspectiva filosófica, significa que a existência se dá na relação com os outros. Cuidar do outro é o maior gesto de amor, e a ética passa pelo cuidado. “Nós somos seres sociais. Se cortamos essa dimensão da sociabilidade do homem, perdemos a capacidade de sermos humanos. As infrações no trânsito, brigas, até mortes, infelizmente, são intolerâncias que nascem exatamente de uma cultura que não prevê esse cuidado com o outro”.
“Então, todos nós somos comprometidos com isso. Não adianta dizer ‘é fulano de tal que tem que fazer’. Somos nós, como sociedade, que precisamos falar mais disso, pensar mais nisso. Para que essa cultura da busca de meta e de resultado seja superada por uma cultura de estarmos juntos e juntos vamos conseguir, que é a ideia de um fazer todos juntos”, conclui.

Blitz educacional - O Geppem tem realizado um trabalho fundamental na educação para o trânsito em Belém. O grupo atua da educação básica à superior, formando futuros professores e aplicando projetos em escolas e universidades. Segundo Diana, as crianças são o público que melhor responde a essas informações, atuando como multiplicadoras do conhecimento para suas famílias e comunidades.
"As crianças gostam de aprender, nossas atividades são lúdicas. E o que acontece? A criança chega em casa, ela quer falar o que ela aprendeu com a avó, com o tio, com a tia, com o irmão, com o primo, e isso vai se multiplicando". Ela relata um caso em que um pai a procurou na escola para reclamar que o filho estava querendo "mandar nele" durante os trajetos que faziam de carro.
“Fomos conversar e expliquei que o filho dele era muito interessado durante as atividades e se ele estava fazendo aquilo era porque queria o bem de todos. Observei também que tipo de exemplo ele estava dando. Este pai absorveu aquilo e se transformou também em um multiplicador, promovendo a ideia de uma oficina para os pais também. Ou seja, tudo partiu daquela criança”, conta.
Na próxima segunda-feira, 24 de fevereiro, o Geppem realizará uma blitz educativa nas entradas do CCSE e da reitoria da Uepa, com o objetivo de sensibilizar a comunidade acadêmica sobre a importância do respeito às regras de trânsito. A ação inicia a partir das 7h30 e contará com a participação de alunos da pedagogia e da equipe de educação no trânsito do Detran, um parceiro recorrente do grupo. A blitz faz parte das ações educativas que visam sensibilizar as pessoas, plantando a semente da conscientização.
Um retrato do trânsito em Belém:
População: 1.303.403 habitantes (IBGE, 2022)
Frota: 545.161 veículos registrados até 07/2024
Índice de inadimplência da frota: 46,32%
Condutores com CNH vencida: 24,73%
Acidentes: Em 2023, foram registrados 9.560 acidentes. O número de mortos em 2022 foi de 145 pessoas.