Com alfabetização, internos do sistema penal do Pará reescrevem suas histórias
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) aposta na garantia do direito à educação como um dos pilares da ressocialização
Nos últimos cinco anos, a Seap promove projetos educacionais como política de ressocialização. Mais de 2 mil custodiados já foram alfabetizados no sistema penitenciário do Pará
“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Essa é uma das mais célebres frases do professor, pedagogo e filósofo Paulo Freire, patrono da Educação no Brasil, que expressa a grandiosidade e o poder transformador da educação.
Promover a educação básica, direito garantido pela Constituição a todo brasileiro, é uma das diretrizes da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) desde sua criação.
Embora os desafios sejam muitos, nos últimos cinco anos a Secretaria já garantiu a alfabetização de mais de 2.100 internos, trabalho realizado em parceria com prefeituras e instituições. A alfabetização de homens e mulheres dentro do sistema penitenciário do Pará vem transformando realidades e abrindo novos caminhos para transformar vidas.
A coordenadora de Educação Prisional, vinculada à Diretoria de Reinserção Social (DRS) da Seap, Patrícia Sales, conta que em 2023, por meio do Projeto “Tempo de Ler”, implementado em parceria pela Seap e Instituto Brasileiro de Educação e Meio Ambiente (Ibraema), foram alfabetizadas 282 pessoas privadas de liberdade (PPL).
Os concluintes ficaram aptos a seguir os estudos na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos), que permite a jovens, adultos e idosos – sem acesso à escola na idade adequada – a conclusão dos ensinos fundamental e médio. Nesse esforço, o Ibraema é um dos grandes parceiros da Seap, informa Patrícia Sales.
“A gente vê com excelentes olhos a parceria com o Ibraema. Foi um divisor de águas porque antes, apesar de ter o EJA nas unidades, não era focado em alfabetizar. Muitos PPLs desistiram de estudar porque não conseguiam acompanhar por não saberem, às vezes, nem ler e escrever o próprio nome. Essa parceria realmente foi um divisor porque hoje a gente entrega o PPL para a EJA já alfabetizado. Às vezes, eles já passam direto para a segunda etapa, de tão qualificados”, afirma.
Segundo a coordenadora de Educação Prisional, a Secretaria trabalha para ampliar esse atendimento. “Diante desses números projetamos a abertura de mais seis turmas de alfabetização, buscando beneficiar o maior número de pessoas interessadas”, garante Patrícia Sales.
Ela acrescenta que, “em 2024, contamos com 302 PPLs em processo de alfabetização, ultrapassando 2.100 alfabetizados em cinco anos”. As maiores dificuldades, diz a coordenadora, estão nos espaços e na falta de professores.
Oportunidades – A pedagoga Lindomar Espíndola de Carvalho, representante do Ibraema no Pará, considera fundamental oferecer o acesso à alfabetização aos internos.
“Essa pessoa sofre um duplo processo de exclusão. Uma vez que ela é presa, não sabe, não consegue ler nada que vem à vista dela, para que ela possa se comunicar na forma da leitura. É muito complicada a vida dessa pessoa. E quando ela chega no momento da prisão tem essa ideia que, agora, todas as oportunidades já passaram pela vida dela. Então, ela fica mais perdida que os demais”, explica Lindomar de Carvalho.
Novo horizonte - O acesso ao ensino básico nas unidades prisionais gera um impacto positivo para as pessoas privadas de liberdade. Segundo a representante do Ibraema, quando essa pessoa “descobre que na unidade prisional tem um projeto de alfabetização, e os outros começam a falar que ela pode ir para uma sala de aula aprender a ler e escrever, é um horizonte, é um mundo que se abre diante dessa pessoa que estava perdida ali. E ela se encontra, inicia esse processo de alfabetização e depois vai prosseguindo”.
Em sua experiência como educadora, Lindomar de Carvalho testemunha as transformações que a educação promove nas pessoas. “Já temos nas unidades prisionais pessoas que entraram sem saber nem escrever o nome. No seu próprio RG estava escrito não alfabetizado, e com o tempo essa pessoa foi se dedicando ao estudo, aprendendo e se desenvolvendo. Foi nascendo nela uma esperança, e ela galgou outras séries, começou esse processo de alfabetização e depois foi para a primeira etapa, segunda, terceira, quarta e chegou a concluir o ensino fundamental”, relata a pedagoga.
“Medalha de ouro” – Segundo Lindomar de Carvalho, quando é apresentada a oportunidade de estudo a um custodiado, é como se a Seap colocasse um espelho diante dessa pessoa, “dando a ela a oportunidade que outrora ela não teve, ou se teve deixou passar, e agora resgatou essa oportunidade. Para nós, enquanto educador no cárcere, é a nossa medalha de ouro. É poder ver essa pessoa avançando. E eu acredito que para a Secretaria é o cumprimento do seu papel social, da sua finalidade de reintegração, de reinserção social através da educação na vida dessas pessoas”.
A Unidade de Custódia e Reinserção de Mosqueiro (UCR Mosqueiro), administrada pela Seap, tem amplo destaque na educação e formação profissional de custodiados. Os internos que optam pela educação como um novo caminho veem a possibilidade de mudança e a esperança em uma nova história.
Autoestima - Para o diretor da unidade, Abedolins Xavier, promover a educação é importante para todo o sistema prisional, “tanto para quem está à frente da Seap, para quem está na direção de uma Unidade Prisional e para os PPLs, e mais ainda para pessoas que, por algum motivo, não tiveram oportunidade de estudar. Quando aparece essa oportunidade, percebe-se no rosto do PPL a alegria. A autoestima fica em alta, sabendo que está conquistando algo muito importante para ele”.
O diretor ressalta que, após o interno passar pelo processo de alfabetização, as mudanças no comportamento são visíveis. “Ele muda completamente. A educação muda o ser humano em vários sentidos, o faz enxergar o mundo e as coisas de forma diferente. Uma pessoa com uma idade avançada aprender a ler e escrever se torna uma conquista muito grande”, avalia.
Ele acrescenta que se sente “honrado em fazer parte dessa estatística. Digo com propriedade, pelos anos que eu tenho de casa, que nunca havia acontecido um investimento tão grande em educação no sistema penitenciário paraense. Nos dias de hoje, o interno só não estuda se não quiser, pois sabemos que em todas as unidades do Estado tem educação”.
Esperança no futuro – Carlos Alberto Santana Leal, interno da UCR Mosqueiro, passou pelo processo de alfabetização no cárcere porque não teve oportunidade na infância – começou a trabalhar muito cedo para ajudar a avó, que assumiu sua criação. “Minha avó sempre botou a gente para ajudar no trabalho, para dar o nosso sustento”, conta Carlos Alberto.
Na unidade prisional ele conseguiu ser alfabetizado. “Na Casa Penal de Mosqueiro tive essa oportunidade de estudar na Casa Penal, aprender alguma coisa sobre a leitura, escrever meu nome, que eu não sabia. Eu agradeço à direção da Casa Penal e aos policiais que confiaram em mim, que me deram a oportunidade de me trazer para a sala de aula”, diz o custodiado.
A alfabetização foi o passo inicial para Carlos, inclusive no âmbito profissional. Alfabetizado, ele começou a fazer cursos profissionalizantes ofertados na unidade. E ainda recebia ajuda dos colegas de cela nos estudos.
“Continuei com os cursos que eu tenho feito aqui, graças a Deus. Tudo isso eu fui aprendendo conforme o tempo que ia estudando, e com a ajuda dos próprios parceiros de cela, pois quando não sabia ler a palavra eu pedia para eles me ensinarem. Eu ia aprendendo devagar”, conta Carlos Alberto.
Ele já vislumbra o futuro depois de passar pela formação profissional. “O estudo, os cursos, eu estou continuando até hoje. Sempre confiando no diretor da casa penal, e para não chegar lá na frente e fazer coisa errada, para não voltar mais. Eu quero sair daqui mudado. Novo pensamento, novo modo de ver a vida lá fora, para poder voltar para a sociedade de cabeça erguida”, afirma o interno.
Texto de Márcio Sousa