Estudo sobre escalpelamento realizado pela Fapespa aponta perfil das vítimas
Nota técnica traça um panorama histórico das ocorrências no Pará e as políticas públicas que contribuem para o acolhimento das vítimas e a erradicação desse tipo de acidente
O dia 28 de agosto, instituído como Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento, chama atenção para um dos acidentes mais traumáticos ainda enfrentados pelas populações ribeirinhas da Amazônia. No Pará, um estudo da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), elaborado pela Diretoria de Estudos e Pesquisas Socioeconômicas e Análise Conjuntural (Diepsac), revela avanços no enfrentamento do problema e reforça a necessidade de atuação conjunta de instituições para erradicação dos casos.
A nota técnica “Menina, mulher e ribeirinha da Amazônia paraense e o acidente em embarcações com escalpelamento”, publicada em janeiro de 2024, disponibilizado no site da Fapespa, reúne dados da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental, da Casa de Apoio Espaço Acolher e de levantamentos estaduais, traçando um panorama histórico das ocorrências no Pará.
“O estudo mostra claramente que apesar das inúmeras iniciativas o acidente de escalpelamento ainda é uma realidade constante nos nossos rios, por isso é preciso ainda mais investimento nas campanhas de conscientização dos usuários e dos donos dessas embarcações”, avalia o presidente da Fapespa, Marcel Botelho.
De acordo com o levantamento, a Secretaria de Saúde Pública do Pará (Sespa) contabilizou 483 ocorrências de acidentes com escalpelamento no Estado. As localidades com maior número de casos foram: Belém (42), Portel (37), Cametá (32), Breves (32), Curralinho (26) , Anajás (20), Muaná (19), São Sebastião da Boa Vista (18), Igarapé-Miri (16), Melgaço (14), Bagre (12), Santarém (12), Oeiras do Pará (12), Almeirim (11), Oriximiná (11), Gurupá (11), Abaetetuba (10), Limoeiro do Ajuru (10), outros municípios (95) e sem informações dos usuários a respeito do município (43).
Na linha do tempo de acidentes, o ano de 2009 marcou negativamente a luta contra o escalpelamento, pois foi um momento em que o Pará registrou o mais alto índice de casos, com 22 vítimas. Porém, foi neste mesmo ano que também tudo mudou, a partir da criação da lei federal de proteção e atenção às vítimas de acidente de escalpelamento. A norma foi criada determinando a obrigatoriedade no uso de proteção do eixo do motor e de partes móveis de embarcações.
A Fundação de Estudos e Pesquisas entende que ao se organizarem, interpretarem e disponibilizarem dados, informações e diagnósticos do Estado do Pará, aumenta-se a possibilidade de acertos nas tomadas de decisões rumo às metas estabelecidas na gestão administrativa, nas diversas esferas de Governo. Assim, disponibilizar informações fidedignas permite aos Governos disporem de instrumentos adequados para uma gestão descentralizada.
As vítimas - O escalpelamento atinge principalmente mulheres ribeirinhas de cabelos longos, quando o couro cabeludo é abruptamente arrancado em contato com o eixo em alta rotação do motor de pequenas embarcações. Poucos segundos bastam para uma vida ser tomada por sequelas físicas e danos psicológicos.
A ocorrência dos acidentes com escalpelamento ocorre, majoritariamente, com mulheres que ainda são meninas, residentes às margens dos rios e furos de rios da Amazônia paraense. O estudo identificou que 98% das pessoas vítimas de acidentes com escalpelamento são mulheres e 2% são homens. A causa pode estar relacionada à preponderância do número de mulheres ribeirinhas que habitualmente escolhem ter cabelos compridos, podendo estar associado ao fato de 56,5% serem praticantes da religião evangélica.
Outro aspecto é que, além de serem mulheres, 67% das vítimas são crianças e adolescentes entre 2 e 18 anos de idade. Pessoas adultas e idosas corresponderam a 33% dos casos. Ao verificar os percentuais por faixas etárias, com base nos atendimentos feitos pelo Espaço Acolher, ligado à Santa Casa de Misericórdia, entre os anos de 1964 e 2023, percebeu-se ainda que o maior número de eventos de acidente de escalpelamento envolve crianças de 7 a 9 anos de idade, correspondendo a 24%; seguido de crianças de 10 a 12 anos, com 19% das situações; e, posteriormente, 10% dos casos correspondentes a crianças de 13 a 15 anos.
Amazônia – Com esse estudo foi possível constatar que apenas três Estados registram escalpelamento: Pará, Amapá e Amazonas e constatou-se que peculiaridades da região contribuem para o surgimento de casos. A Região Amazônica tem a extensão de 8 milhões de km², com a maior bacia hidrográfica do planeta. Nesse contexto, percorrer áreas de grandes ou de pequenas extensões de rios, igarapés e furos, requer o uso de embarcações. Para ribeirinhos, grupo reconhecido como povos tradicionais que moram às margens dos rios da Amazônia, o processo é habitual, sendo pelas águas, muitas vezes, o único caminho possível para conseguirem realizar deslocamentos cotidianos.
De acordo com o estudo, a Capitania dos Portos registrou a existência de 21.232 mil embarcações, dentre as quais 6.163 seriam somente de uso para o transporte de passageiros. Todavia, estima-se que aproximadamente 40 mil embarcações naveguem em condições clandestinas. Fatores que contribuem para situações de escalpelamento em pequenas embarcações de transporte de passageiros no Estado. De 2006 a 2022, a instituição constatou 173 episódios de acidentes de escalpelamento. O ano de 2009 foi o que apresentou o maior número de acidentes na série histórica, com 22 casos. A partir deste ano, os números alcançaram patamares mais baixos, fechando 2022 com 7 ocorrências no Pará e Amapá.
Rede de apoio – A marca de impacto do acidente é proporcionar às vítimas um sofrimento inimaginável, reverberando em expressivo sofrimento físico, psicológico e social para toda a vida. A proteção das vítimas vem em forma de políticas públicas e uma consistente rede de proteção e atenção social. Em Belém, o atendimento às vítimas de escalpelamento ocorre, desde 2002, na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, por meio do Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (Paives).
Dentro das ações governamentais na luta pela erradicação do acidente, foi criada a Comissão de Erradicação dos Acidentes com Escalpelamento (CEEAE) em embarcações do Pará, que aglutina a cooperação de várias instituições do Estado na perspectiva de intervenção intersetorial na questão, a partir de abordagens multiprofissionais.
Já a Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa), tem como atribuição realizar ações de prevenção, capacitação de profissionais, articulação e mobilização de colaboradores do estado e sociedade civil para o enfrentamento da questão. A Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho e Renda (Seaster) atua viabilizando o acesso de vítimas a programas, projetos, serviços e benefícios da política pública.
Outro recurso de atenção às vítimas de acidente com escalpelamento no Pará, é a Casa de Apoio Espaço Acolher. O local caracteriza-se em uma residência de acompanhamento prolongado, tendo em suas dependências classe hospitalar, a partir da atuação da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), com relativas condições de infraestrutura para a garantia de mínimo bem-estar às vítimas de escalpelamento em tratamento na cidade de Belém.
Nesse processo há ainda a participação da Marinha do Brasil, através da Capitania dos Portos, que desenvolve várias ações, como fiscalização de embarcações, instalação gratuita da cobertura do eixo de pequenas embarcações, campanhas de prevenção, entre outras. De 2009 a 2022, a Marinha implantou 5.339 eixos de cobertura de embarcações. A instalação da cobertura do eixo nas pequenas embarcações é um procedimento crucial pela sua eficácia na erradicação dos acidentes com escalpelamento.
Para ler a nota técnica “Menina, mulher e ribeirinha da Amazônia paraense e o acidente em embarcações com escalpelamento”, clique aqui.