Lugar, Território e Ancestralidade Indígena permeiam trabalhos de professor da Uepa
Antropólogo Eduardo Viveiros de Castro aborda questões identitárias dos povos indígenas atravessadas por preconceitos e discriminações
“Índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de ‘estado de espírito’. Um modo de ser e não um modo de aparecer”. Esse trecho de uma entrevista concedida em 2006, ao Instituto Socioambiental (ISA), pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor de Antropologia no Museu Nacional e especialista em Etnologia Brasileira, vai diretamente a um dos pontos mais elementares sobre como a maioria das pessoas, que não se reconhecem como indígenas, identificam essas populações: meramente pela aparência.
Também é de Viveiros de Castro a provocação expressa na frase: “no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. E no Brasil do Censo 2022, 1.693.535 pessoas se consideraram indígenas. Segundo Fernando Damasco, gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “os povos indígenas estão presentes nas cidades, em áreas urbanas, em áreas rurais, em áreas remotas, em favelas e todos precisam ser recenseados”.
Aliás, ainda segundo os dados do último censo demográfico, quando considerada a totalidade de indígenas vivendo no país, a maioria, 63,27%, vive fora de Terras Indígenas, informação que de certa forma, indica a falência de um modelo de contenção territorial indígena.
Questões relacionadas aos preconceitos e desconhecimentos sobre a realidade espacial e territorial dos povos indígenas estão no cerne dos trabalhos realizados pelo geógrafo indigenista Sandoval dos Santos amparo, professor de Geografia Humana no campus VII da Universidade do Estado do Pará (Uepa), no município de Conceição do Araguaia.
Em 20 anos de atividades junto a populações indígenas, sendo 10 trabalhando na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o professor questiona inclusive o protagonismo indigenista sobre o indígena. Nesse sentido as práticas e publicações de pesquisas por ele realizadas, buscam evidenciar que todas as questões relacionadas a problemas como a territorialização, os conflitos e as violências em terras indígenas, devem considerar, essencialmente, o modo de ser, como afirma Viveiros de Castro, e, principalmente a cosmologia indígena.
Sem conhecer nada sobre a cosmologia indígena, ou seja, sobre o modo como os povos indígenas concebem a origem e a evolução do universo, determinando a maneira como fazem parte dele, qualquer aproximação corre o risco de reforçar a imagem idílica associada à fartura, à liberdade e ao acesso à terra, por exemplo. Por essa razão, desde o doutorado, o professor Sandoval passou a se aprofundar nos mitos, nas histórias indígenas, acessadas em processos de convívios, diálogos e aprendizados com as populações co-autoras dos estudos que ele realiza.
“Em Conceição do Araguaia, por exemplo, eu tenho buscado visitar os sítios arqueológicos, estudar as tradições e procurar esclarecer as relações que, eventualmente, existam entre esses sítios e a etnologia indígena, especialmente do povo Mebêngôkre (Kayapó)”, explica o pesquisador, referindo-se a visitas que tem realizado em locais como o Lajedo do Cadena, que são feita junto com lideranças indígenas. “É emocionante, inclusive para os próprios indígenas”, afirma Sandoval.
A realidade empírica dos povos indígenas surgiu na vida de Sandoval Amparo, a partir de duas perspectivas principais: uma que corresponde à desordem sistêmica nos territórios, à violência, aos conflitos. E outra, que diz respeito à cosmologia, à visão de mundo e à beleza dessa visão de mundo dos povos indígenas. “O meu trabalho, na verdade, tenta conciliar essas duas escalas do pensamento sobre os povos indígenas a partir da Geografia, isto é: uma escala da desordem e uma escala da ordem cósmica, por assim dizer”, explica.
O pesquisador reforça que é tempo de fortalecer as parcerias de trabalho e manter a nossa solidariedade com os povos originários do Brasil, por acreditar que o pensamento indígena, a cosmologia indígena têm muita coisa a nos ensinar.
O filósofo, ambientalista e escritor Ailton Krenak, primeiro indígena a ocupar um assento na Academia Brasileira de Letras, em cerimônia de posse ocorrida no último dia 5 de abril, também explica que ao longo de 500 anos de resistência, as populações indígenas seguem expandindo a subjetividade que as torna singulares, negando uma ideia de que aproximadamente 250 etnias sejam todas iguais, sendo a língua, por exemplo, um dos aspectos dessa distinção. Segundo Krenak, são 170 línguas e dialetos nativos no Brasil.
Nesse contexto, a ideia de unidade emerge ancorada justamente na compreensão de universo que a chamada humanidade poderia aprender com as populações indígenas. “Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco a vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente”, ensina Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo.
Pequeno Glossário
Etnologia: Ciência que analisa as situações e documentos registrados pela etnografia, descrição das várias etnias ou da cultura de um povo, interpretando-os a fim de propor uma comparação entre culturas.
Indigenismo: perspectiva política, cultural e antropológica voltada para o estudo e a valorização das culturas indígenas e o questionamento dos mecanismos de discriminação e etnocentrismo em detrimento dos povos indígenas.
Realidade empírica: Diz respeito às experiências vividas, não a teorias e métodos científicos.
Fontes complementares para consulta