Interculturalidade: a ciência vai ao encontro da tradição
Quem nasceu no Pará e tem mais de 30 anos dificilmente escapou de uma “cura” na garganta em períodos de gripe. Aplicado pela mãe e orientado pela avó, o método consiste em aplicar o óleo de andiroba diretamente na garganta, para acelerar seu poder curativo e livrar a criança dos fluidos e inflamação local. Entretanto, é cada vez menos comum a aplicação deste conhecimento tradicional nas metrópoles amazônicas, o que em muito se deve à adesão ao saber científico, que prescreve remédios e tratamentos desenvolvidos dentro de um método científico.
Os saberes intuitivos e práticos são relegados a uma condição mística, levando, por exemplo, tratamentos naturais a serem vistos como algo exótico e curioso. Dispostos a mudar este cenário e dar ao saber tradicional a reverência e respeito que merece, diversas correntes acadêmicas buscam valorizar e preservar o conhecimento ancestral, no esforço de compreendê-lo e validá-lo como uma rica fonte de informações capazes de solucionar problemas atuais da humanidade.
Há 34 anos trabalhando com remédios e tratamentos feitos à base de ervas medicinais, Clotilde de Souza, conhecida internacionalmente como Dona Coló, é uma das erveiras mais reverenciadas do Ver-o-Peso. Do alto dos seus 65 anos e membro da terceira geração de erveiras da família, ela iguala seus conhecimentos aos de um profissional de saúde. “O médico tem o diploma, mas eu tenho a sabedoria. Mal sei assinar meu nome em um papel, embora saiba receitar tratamentos para os mais diversos males do corpo e da alma”, resume.
Todas as ervas comercializadas na barraca nº 34 são plantadas, colhidas e manipuladas por ela em seu quintal, que também é a fonte de toda a medicina consumida pelos nove filhos e sete netos. Dona Coló revela o ingrediente principal de todos os seus preparados. “A fé e a positividade, tanto minha, que preparo, como a de quem consome são fundamentais para o sucesso do tratamento. Acho que não só aqui como em qualquer situação da vida”, descreve. Ela afirma nunca ter tido seus conhecimentos colocados em xeque, mas garante que existe uma barreira para sua aplicação.
“Eu gostaria de ver a medicina tradicional no mesmo patamar de importância da medicina acadêmica, embora não acredite que chegue a ver esse dia, pois tudo que é comprovado, é tirado do saber tradicional e aplicado como um ‘achado’ científico”, observa. A descrença de Dona Coló com o reconhecimento de seu saber contrasta com a visão mais aberta de Rosineide de Oliveira Braga, de 34 anos, vinte destes dedicados à manipulação de ervas medicinais. “Eu sou uma cuidadora e tenho plena confiança nos meus conhecimentos, embora acredite que o saber tradicional e científico podem andar de mãos dadas”, opina.
Para ela, a investigação dentro do método científico pode ser positiva para definir doses e meios de utilização das plantas. “É muito bom perceber que hoje em dia até mesmo médicos receitam chás e tinturas, pois reconhecem seu efeito. Acho que, contanto que não haja apropriação do conhecimento e seja preservado o respeito, essa abertura vai gerar muitas coisas boas para todo mundo”, conclui.
Bioculturalidade
Há algumas centenas de milhares de anos, o conhecimento empírico e de observação garantiu a existência dos seres humanos e sua organização em sociedade. Todas as ciências nasceram do saber acumulado através das gerações. Porém, em um momento bem mais recente da história, o conhecimento tradicional foi para o banco de trás, dando lugar ao saber advindo da experimentação científica, que passou a ser a fonte número um do conhecimento.
O exemplo das ervas é apenas um entre uma vasta gama de conhecimentos, que vão desde o comportamento de animais e identificação de venenos ao tratamento do solo e até o curso das águas, da nascente aos rios.
Buscando trazer ao debate o cuidado de resguardar o imenso patrimônio material e biológico presentes nas diversas comunidades do Brasil, a academia tenta popularizar hoje o conceito de Bioculturalidade. “Há uma tendência global de retorno ao natural. A Etnobiologia e todas as etnociências já demonstram isso. Tentamos agora repensar nossas relações com as comunidades tradicionais”, apresenta a curadora do Herbário Marlene Freitas da Silva, da Universidade do Estado do Pará (Uepa), professora doutora Flávia Lucas.
O movimento mundial de resgate, preservação e respeito ao conhecimento tradicional se encontra em estágio bastante avançado se comparado ao Brasil. “O que nos alerta e nos choca é que na Amazônia isso ainda é muito tímido. Precisamos mudar este posicionamento para ontem. Vivemos em uma área de muita vulnerabilidade e é preciso que as pessoas que aqui vivem se deem conta do que está a sua volta e prestem mais atenção para onde estão morando”, alerta a pesquisadora.
E ao contrário do que determina o nosso imaginário - dominado pelos estereótipos reforçados no dia-a-dia – o conhecimento tradicional não se encontra apenas nas mãos de comunidades indígenas, quilombolas ou ribeirinhas. Para exemplificar isso, a professora relembra uma pesquisa que desenvolveu em 189 quintais periurbanos do município de Abaetetuba. “Em cada um destes quintais existe uma pessoa que é referência no conhecimento e aplicação das plantas ali cultivadas. E o conhecimento de cada uma delas é específico às necessidades daquela família ou vizinhança, também passado oralmente de geração a geração. Tradição e cultura se desenvolvem em qualquer lugar, entretanto, persiste uma ideia um tanto naturalista de que comunidades tradicionais só terão repertório tradicional se estiverem no mato”, ressalta.
Neste ponto, a universidade entra com o método científico para catalogar informações que então serão compartilhadas com a sociedade. “A nova Lei de Biodiversidade veio prevenir práticas antiéticas que foram exercidas durante muitos anos, quando o pesquisador chegava em uma comunidade, se servia de seus conhecimentos e ia embora levando aquilo para si. Hoje há protocolos sérios, muitos passos a serem seguidos para chegar a uma comunidade e conduzir uma coleta de dados”, conta.
A experiência de compartilhar conhecimentos ancestrais com cada comunidade é descrita com emoção pela pesquisadora. “Quando chegamos ao local, as titulações perdem o sentido, pois nos vemos diante de um repertório tão rico e tão profundo, sem data de início. É imemorial. Nos sentimos muito pequenos diante de tantos detalhes, preservados apenas pela oralidade”, analisa Lucas. O contato, quando realizado de forma ética, se transforma em um canal de conectividade espontânea. “Somos meros observadores, eles são os protagonistas”.
Reverter o quadro atual, na avaliação da pesquisadora, é uma das missões da universidade. “A Bioculturalidade cabe nos currículos de todos os cursos. É nossa obrigação conscientizar estes profissionais em formação do seu entorno. Fazê-los perceber que vivem rodeados de um bioma rico e cheio de peculiaridades e é missão deles trabalhar e reconhecer isso”, conclui.
Interculturalidade
O Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), executado pela Uepa, trabalha para ampliar o diálogo entre os saberes, quando professores também se tornam alunos ao interagir com comunidades tradicionais. “Foi a partir da experiência como professores formadores que tivemos o olhar voltado para uma nova relação pedagógica ao trabalhar a formação de professores no Parfor, ou seja, estabelecer um contato formativo em dimensões diferenciadas das que temos com a graduação extensiva, cujo perfil do alunado é totalmente distinto. Nesse ponto, há um desafio muito grande e ao mesmo tempo um rico aprendizado”, resume a coordenadora do Parfor na Uepa, a professora doutora Kátia Melo.
O Parfor/Uepa já formou 1.505 professores, atualmente conta com aproximadamente 49 turmas e cerca de 1.436 alunos em formação em mais de 30 municípios do Pará. A experiência desses professores em formação, que trazem uma bagagem de saberes, obrigou a coordenação do programa a rever seus métodos. “Isso é legítimo e de extrema importância para a academia, que precisa incluir saberes pulsantes e orgânicos de nossa Amazônia Paraense, enfrentando aquilo que Boaventura Santos chama de ‘sociologia das ausências’ no seio da academia, ou seja, neste espaço devem estar presentes outros saberes”, pontua a coordenadora, que cita como exemplo as turmas interculturais indígenas recém-formadas dos povos Waiwai e Tapajós Arapiuns.
“A turma Waiwai começou e terminou com 36 alunos. Não teve evasão, isso é emblemático no Programa, pois se trata de um povo falante da língua nativa, suas aulas sempre necessitavam de intérpretes. Essa foi uma experiência riquíssima para os professores formadores desta turma, na medida em que além da difusão do conhecimento, necessitavam de deslocamento para as aldeias, buscar modos e métodos de comunicabilidade e reciprocidade no processo formativo”, relembra. Diante de todas as adversidades, eles chegaram até o final do curso, e já protocolaram na coordenação do Parfor o pedido de uma pós-graduação, o qual foi encaminhado ao Centro de Formação dos Profissionais da Educação Básica do Estado do Pará (Cefor) e ao Fórum Regional do Parfor.
A outra turma intercultural, dos Tapajós Arapiuns, cuja sede do curso funcionava no campus da Uepa em Santarém, também reunia uma especificidade: alunos de oito etnias diferentes, que também trocaram conhecimentos entre si. “Isso reitera a necessidade da relação entre os saberes tradicionais e científicos numa perspectiva de descolonização do saber, mostrando que todos são fundamentais para a sociedade com vistas a preservação da humanidade”, pondera a coordenadora.
Para garantir que a troca de conhecimentos se dará de forma adequada, as Instituições de Ensino Superior (IES) debatem constantemente a respeito do perfil do professor formador, uma vez que ele precisa estar atento e aberto a um processo formativo interativo, participativo, que implica flexibilidade, escuta e respeito aos professores que estão em formação e de sua base de conhecimento.
“Nesta direção, a perspectiva Freireana é fundamental, para pensar a educação de forma dialógica, democrática e plena de respeito. A questão do conflito dos saberes científicos e tradicionais, perpassa pela quebra do paradigma de que o saber científico é a verdade absoluta. Esse é um grande exercício. Todavia, o professor formador que não entende isso, passa ao largo do Programa”, alerta Melo.
A solução para a abertura do diálogo proposta pela coordenadora é similar àquela apresentada por Flávia Lucas: a inclusão do conhecimento tradicional amazônico nos currículos universitários. “Há uma necessidade que mais autores amazônicos estejam nos currículos, nas leituras obrigatórias, bem como autores latinos americanos. Isso não implica em um abandono aos clássicos europeus e estadunidenses, mas, sim, que possamos conhecer e nos apropriar da produção latino-americana, o que representará a afirmação identitária, a qual traz ao seu povo uma maior clareza sobre si, autonomia e soberania”, conclui.
A fala de Kátia Melo reitera a do reitor da Uepa, Rubens Cardoso, que reconhece a necessidade de inclusão do conhecimento tradicional produzido na Amazônia e de estabelecer uma conexão direta com as comunidades. “O Pará é multicultural. Sendo a Uepa uma das maiores universidades multicampi da região, é natural que estejamos em posição de ampliar este diálogo”, observa. “Evoluir é necessário, inovar também. Entretanto, é possível construir conhecimento incluindo o saber tradicional, ao invés de negá-lo. É uma questão de mediação e respeito e ainda temos muito a aprender com eles”, acrescenta.
Aprendizado
A integração do saber tradicional na academia também inclui as pesquisas na área de Saúde. O Laboratório de Morfofisiologia Aplicada à Saúde da Uepa possui diversas linhas de pesquisa que tem por princípio introduzir em suas investigações o conhecimento tradicional e diversos pesquisadores determinados a validar o que também lhes foi passado através de gerações. “O saber popular guia a pesquisa. Todo amazônida tem algum grau de contato com o conhecimento tradicional. Usamos isto para definir as plantas e substâncias a serem estudadas e suas aplicações”, conta o coordenador interino do Laboratório, professor doutor Anderson Bentes, que também passou pela experiência da “cura” da garganta com andiroba.
Conforme dito por Flávia Lucas, a inclusão do conhecimento tradicional na academia em instituições do exterior é mais amplo. “Algumas publicações são específicas para isso e outras exigem que este saber seja incluído no trabalho, respeitando todos os protocolos de preservação. Revistas alemãs e americanas bastante renomadas adotaram estes procedimentos para publicação de artigos”, conta o coordenador. A mobilização dos pesquisadores paraenses não para nos muros da Uepa, que mantêm parceria ativa com diversos laboratórios da Universidade Federal do Pará (UFPA) para realização de seus estudos.
“O que tentamos fazer é determinar as doses adequadas para as diversas aplicações. Algumas plantas, se utilizadas em excesso, são tóxicas. Como muitas pessoas veem os remédios naturais como inofensivos, isso pode ser prejudicial se não houver uma orientação neste sentido”, ressalta Bentes. Os olhos da aluna de Terapia Ocupacional Renata Silva denunciam a paixão pelo conhecimento tradicional ao relembrar seu bisavô. “Ele tinha um quintal com diversas plantas em Vila da Paz e sabia como usar cada uma delas. Eu o reverenciava por tudo que ele sabia e como as pessoas o respeitavam por dominar aquele conhecimento. Por causa dele quis ser pesquisadora”, conta.
Atualmente, ela trabalha com a aplicação do extrato liofilizado da aloe vera amazônica associado ao ultrassom em ratos com tumor de Ehrlich, para verificar sua eficácia no tratamento. A pesquisa é orientada pelo professor doutor Jofre Freitas, e ainda está em andamento, mas já apresenta resultados promissores.
“O ideal é que na região amazônica consigamos chegar ao nível das pesquisas e utilização de plantas medicinais que é feita no Japão, onde existem muitas pesquisas sobre os reais efeitos de cada planta e de seus compostos sobre o nosso organismo saudável e doente. Da mesma forma, existe uma forte regulação sobre os produtos que são lançados no mercado permitindo que cerca de 70% dos médicos japoneses prescrevam para seus pacientes a utilização de plantas medicinais”, explica Freitas, que também coordena o Laboratório de Morfofisiologia.
As professoras doutoras Tereza Cristina e Kátia Kietzer orientam a aluna Jamylle Campos na pesquisa que investiga os efeitos anti-inflamatórios da andiroba associada ao ultrassom no tratamento de lesões em ratos. “Investigar um tratamento tradicional não parte de uma desconfiança de sua eficácia e, sim, da certeza de que aquilo funciona, pois crescemos com isso. Sabemos que dará certo e queremos mostrar para o mundo, dentro do método científico, que funciona”, esclarece a professora Tereza.
O Pariri, também conhecido em outras partes da Amazônia como Crajirú, é o objeto da pesquisa dos alunos João Paulo Menezes e Raphaely Progênio. Orientados pelos professores Rodrigo Santiago e George Dias, eles investigam o alto poder de cicatrização da planta em lesões de pele em ratos. “Sempre tive uma forte ligação com a área da Saúde Pública e as plantas são um remédio acessível para a população. Vejo que a abertura para tratamentos alternativos é cada vez maior e o respeito também é crescente. As pesquisas podem amparar políticas públicas futuras que incluam estes tratamentos no Sistema Único de Saúde (SUS)”, espera João Paulo.