Conheça as histórias de arte e transformação social das Mães artistas do Curro Velho
Por trás das cores vibrantes, das linhas e agulhas e das oficinas no Curro Velho, há mulheres que transformam a própria dor em força e inspiração

Entre telas, tintas e memórias, a artista Maria José encontrou mais que um ofício: conheceu um caminho de cura. Moradora da periferia de Belém, iniciou sua trajetória artística em 1997, ao participar das oficinas de pinturas promovidas pelo Curro Velho. Desde então, seu talento rompeu fronteiras e suas obras já chegaram à Alemanha, Estados Unidos, Suíça, Argentina e diversas capitais brasileiras.
Artista premiada em diversos prêmios e editais, Maria José é dona de um traço artístico único que expressa através das cores as vivências amazônicas . E tudo começou nas oficinas do Curro Velho , e a partir dali, nunca mais parou. Ela já expôs nas principais galerias de Belém, como a Galeria Elf e a Theodoro Braga, na sede da Fundação Cultural Do Pará, no bairro de Nazaré, em Belém.
Maria José também foi premiada por editais como o do Banco da Amazônia, Branco de Melo e o do Instituto Tomie Ohtake, nesse último, ela ficou entre as 10 mulheres selecionadas de mais de duas mil inscritas.
Mas nem toda cor foi fácil de pintar. Em 2013, Maria enfrentou momentos difíceis, com uma depressão após a morte da filha, vítima de feminicídio. A tragédia interrompeu a produção artística e mergulhou a artista em um luto profundo. “As cores sumiram do planeta. Só via preto na minha frente”, relembra, emocionada.
Foi o apoio de amigas e do filho mais novo, Helber Batista, estudante de Artes Visuais na UFPA, que o reencontro com a arte e a vida aconteceu. Retornou ao Curro Velho como instrutora, apoiada pelo próprio filho, que a ajudou a preparar as primeiras aulas. “Foi o meu recomeço. A arte me salvou mais uma vez, trouxe as cores de volta pra mim.”
Mãe de sete filhos e cuidadora de dois netos — Matheus Gabriel e Lorrany — filhos da filha que partiu, Maria segue como instrutora de arte no lugar que considera sua casa: “O Curro Velho é a base de tudo. Foi aqui que eu renasci. E é aqui que eu inspiro outras pessoas a criarem e descobrirem os seus talentos”.

Carla Beltrão: a arte como missão e empoderamento.
Uma mulher que encontrou na arte não só uma profissão, mas uma missão de vida. A trajetória de superação, coragem e afeto da oficineira do Curro Velho é o retrato de tantas mães brasileiras que, mesmo diante das adversidades, transformam sua realidade e a dos outros através da sensibilidade e da criação.
Carla Beltrão chegou ao Curro Velho por meio de um amigo, o artista José Miguel Barros. Na época, recém-separada, com três filhos pequenos e vinda de um casamento que havia deixado para trás em Manaus (AM), onde trabalhava como bancária. Ao mudar-se para Belém, enfrentou dificuldades financeiras e pessoais. Foi nesse momento de instabilidade que a arte entrou em sua vida de forma definitiva.
Apesar de já desenhar e pintar desde a infância, foi no Curro Velho que seu talento encontrou caminho e estrutura. Como aluna, se dedicou a diversas oficinas. Foi orientada por grandes nomes da arte paraense, como João Gatto, Valter Bandeira, Alexandre Siqueira e Dina Oliveira. O aprendizado, segundo ela, foi intenso e transformador. “Aqui, no Curro Velho, eu me encontrei. Eu consegui criar meus filhos com dignidade, trabalhando com o que eu amo”, relembra.
Seu primeiro trabalho como instrutora aconteceu na Funpapa (Fundação Papa João XXIII), substituindo o próprio amigo que a apresentaria à arte. Ali começou a atuar com a terceira idade, ensinando mulheres que, na maioria das vezes, não tinham formação acadêmica, mas traziam na bagagem saberes manuais valiosos: costura, crochê, culinária. “Elas me ensinaram muito. A afetividade é o maior ensinamento. Eu não tenho diploma, mas estudo muito. Preciso da teoria para existir na minha prática.”
Hoje, com mais de 30 anos de atuação como oficineira, ela é referência em pesquisa com materiais não convencionais, como tecidos sintéticos e plásticos. Seu trabalho artístico — que também é pedagógico — já esteve em galerias, editais e até em Bienais. “O que não serve mais no meu processo criativo, eu transformo em ferramenta de ensino. Ensino o que vivo. Ensinar é plantar e colher. E o retorno vem”, diz com orgulho.
Participou de editais como a Lei Aldir Blanc e a Paulo Gustavo. Já deu oficinas em São Paulo e pelo interior do Pará. Mas é no Curro Velho, onde fica o seu coração “Foi aqui que eu virei quem eu sou. E é aqui que eu transformo outras mulheres, assim como fui transformada. Isso não é um trabalho, é uma missão.”
Para Carla Beltrão, o reconhecimento não vem apenas pela carreira sólida, mas pelo impacto que causa na vida de outras mulheres. “Eu ensino, mas recebo muito mais. Muitas não sabem o poder que têm. Eu tento fazer com que se apropriem disso. A renda vem como resultado, naturalmente. Antes disso, vem a autoestima, a liberdade.”

Rosa Silva: entre agulhas, bolsas e renascimento.
Aos 59 anos, Rosa Silva é mais uma mulher que encontrou no Curro Velho não apenas um lugar de aprendizado, mas um espaço de salvação. Mãe de três filhos, Rosa chegou ao Curro em um dos momentos mais difíceis da sua vida: em meio a uma grave depressão. “Quem me trouxe foi uma colega, porque eu só chorava. Queria desistir de tudo. Cheguei a pensar em tirar a minha vida e a dos meus filhos”.
O primeiro contato com o Curro Velho foi acompanhado: o marido e uma sobrinha se revezavam para levá-la até o espaço, devido a tamanha dificuldade que tinha para sair de casa sozinha. “Eu cheguei a vim aqui na frente duas vezes mas sempre voltava pra casa, pois eu sentia que iria me acontecer alguma coisa e não teria ninguém perto de mim pra me ajudar”
A virada veio com a ajuda da professora Silene e das oficinas. Rosa começou a se envolver nas atividades e, aos poucos, encontrou uma razão para seguir. “Aqui eu venci a depressão e descobri uma profissão. O Curro Velho salvou minha vida.”
Desde então, Rosa se tornou uma artesã dedicada. Aprendeu costura do zero — não sabia nem passar linha na agulha — e hoje confecciona bolsas e mochilas que vende para vizinhos, parentes e conhecidos. Com o apoio do filho, que estuda marketing, criou uma marca própria e divulgou seus produtos nas redes sociais. “Meus filhos e netos não compram mochila, sou eu que faço. Hoje, eu tenho orgulho do que construí com minhas próprias mãos”,
Com mais de dez anos de vivência no Curro Velho, Rosa já participou de oficinas de bolsas, papel, tapetagem, serigrafia, rede e muito mais. “Nem sei mais quantas fiz. Aqui, além de aprender, a gente compartilha histórias. Cada módulo termina com um encontro onde cada um conta por que está aqui. Isso cura. Isso une.”
Curro Velho: onde a arte é instrumento de transformação social
Para além do talento individual, as histórias de Maria José, Carla Beltrão e Rosa Silva mostram o poder coletivo do Curro Velho, como espaço público de formação artística, voltado especialmente às comunidades periféricas de Belém. O “Curro” é, na prática, um verdadeiro berço da arte popular paraense e amazônica.
É no Curro, que dezenas de milhares de mães, também, o público mais jovem, como adolescentes e crianças desenvolvem habilidades manuais, a voz, e mudam para melhor suas histórias de vida. Na arte, eles encontram autonomia, autoestima e novas possibilidades de vida. No Curro Velho, cada traço e cada oficina são testemunhos vivos de que criar é também resistir e lutar por dias melhores.
Texto de Maurício Carvalho, estagiário / Ascom FCP