Reabilitação no CIIR mostra oportunidades a paciente de cirurgia inédita no Pará
O maior desejo de Saulo Melo, 32 anos, é viver e poder desfrutar das novas oportunidades que tem hoje, depois de passar por uma cirurgia até então inédita no Pará, a hemicorporectomia. O procedimento, realizado no dia 2 de maio deste ano no Hospital Ophir Loyola, em Belém, removeu 40% do corpo do paciente - toda a porção inferior (pelve e membros inferiores). A intervenção (a terceira realizada no Brasil) foi a única alternativa para Saulo se manter vivo após ser diagnosticado com um tumor em estágio avançado na região pélvica.
A doença foi descoberta “por acaso”, depois de uma consulta dermatológica em que ele mostrou os ferimentos causados pelo tempo que passava sentado. A médica analisou, colheu amostras do tecido e encaminhou para biópsia. “Foi o pior período da minha vida, da descoberta até realizar os exames e decidir. Fiquei internado desde janeiro, ouvi que tinha 15% de chance de sobrevivência, mas era a única forma de continuar”, lembra Saulo, informando que a cirurgia teve dois adiamentos.
Ele conta que o quadro foi se agravando e, às vésperas da cirurgia, teve que ser internado no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) devido a sangramentos. Um dos momentos mais decisivos dessa trajetória foi ouvir os médicos afirmarem que, sem o procedimento, não sobreviveria.
“Eu podia parar tudo isso, e tinha que tentar alguma coisa. Decidi fazer, ainda que com medo, porque não sabia se ia conseguir viver após a cirurgia. Mas, se sim, poderia me reabilitar”, diz, reforçando a importância do apoio que recebeu ao longo do último ano e meio. “Quis fazer pela vontade de ficar vivo, e também pelas pessoas da minha família. Todos me apoiaram, deram força. Sozinho não adianta nada para mim. Todos tinham confiança que eu conseguiria. Então, eu quis tentar”, diz Saulo.
Decisão – Ele nasceu com espinha bífida, uma má-formação congênita resultante da interrupção precoce do tubo neural. Por isso, ao longo de seus 30 anos, desenvolveu diversas úlceras de pressão, que evoluíram para o câncer. Após remover a porção inferior do corpo de Saulo, a equipe médica utilizou uma parte vascularizada do músculo anterior da coxa para servir de apoio aos órgãos internos abdominais e coluna lombar remanescente, durante o fechamento do tronco.
Foi uma decisão difícil, mas ao pesar os prós e contras, Saulo percebeu que nunca tivera qualidade de vida, e essa era a sua melhor chance. “Eu andei poucas vezes, criança ainda. Conseguia fazer bastante coisa, mas por ficar muito tempo sentado, ficava doente, tinha infecções, não tinha controle de urina, fezes”, conta.
Novo ciclo - Agora, Saulo começa um novo ciclo em sua vida. Ele saiu da internação do Hospital Ophir Loyola há quatro meses, o mesmo tempo que faz acompanhamento semanal com fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e preparador físico, além de uma equipe multiprofissional, no Centro Integrado de Inclusão e Reabilitação (CIIR), do Governo do Pará.
Devido ao tratamento, o paciente veio com a mãe de Vigia de Nazaré (município do nordeste paraense), onde residiam, para morar em Belém com o irmão, Luiz, que sempre o leva às sessões no CIIR. Duas vezes na semana, ele é acompanhado por Mayara, preparadora física; Gabriel, fisioterapeuta, e Adriana, terapeuta ocupacional.
“No começo, eu só pensava nos pontos ruins, mas depois comecei a procurar os pontos positivos, o que eu poderia fazer. Antes eu não levantava sozinho, não podia ficar só na cadeira, não tinha equilíbrio, não tinha força suficiente nos braços. Quando comecei aqui, qualquer esforço meu coração acelerava demais. Mas agora já consigo melhor, já me equilibro. Vejo uma grande evolução e espero melhorar cada vez mais”, afirma.
Recuperação – Saulo garante que seus grandes aliados nessa evolução, além da família, são os especialistas que trabalham na sua reabilitação. Ele acredita que a convivência e o contato frequente possibilitam que a relação entre ele e a equipe deixe de ser um mero contato profissional. “Ficam sendo como amigos, pessoas que fazem a gente se sentir bem. É como se fosse uma família”, declara.
Para Mayara Moreira, preparadora física, e Gabriel Martins, fisioterapeuta, que atuam juntos na reabilitação de Saulo desde o início, o sentimento é o mesmo. “Saulo foi meu primeiro paciente aqui. No início, era bem retraído, mas tento quebrar o gelo, porque senão ele se expande. Antes não falava muito, vinha deitado no banco. Mas foi para Vigia, chegou e me mostrou foto de lá. Agora já vem sentado. Tudo que eu penso já é voltado para ele”, afirma a preparadora.
Mayara explica que a recuperação será demorada, e que o progresso do paciente no controle do tronco já é um ponto positivo para a utilização de prótese no futuro. A preparadora também diz que todos têm um olhar cuidadoso com ele, mas que sua principal estratégia é mostrar para Saulo sua capacidade de superação.
“Eu tento dar uma meta. Ele, que só se imaginava deitado na cama, agora consegue fazer apoio. Então, para mim, toda terça e quinta é dia de renovação, é uma superação muito grande. O Saulo passou 30 anos quase se arrastando. Decidiu fazer a cirurgia, teve muita coragem e tem muita força de vontade, senão não conseguiria metade do que ele conseguiu. É muito gratificante”, diz Mayara Moreira.
Inspiração – Gabriel Martins também vê nessa história de vida uma inspiração para o trabalho e para outros pacientes. Um dos episódios que ele considera marcantes nesse processo de recuperação aconteceu há algumas semanas, quando o paciente chegou com a mão machucada no CIIR, após cair durante um passeio com a família na Praça da República.
“A cadeira bateu e ele foi para frente. Foi uma tristeza, mas uma alegria ao mesmo tempo. Nos questionamos, pensando porque estamos treinando e ele ainda cai. Mas percebemos que essa queda foi um marco, porque é sinal que ele está melhorando a segurança, está saindo mais e aprendendo o limite do corpo. Ele tenta um pouco mais porque percebe que pode avançar. A cada dia ele nos surpreende, tanto do ponto de vista da reabilitação, quanto de vida”, diz Gabriel.
Atualmente, além de tratar a parte motora, cognitiva e respiratória, Gabriel diz que é interessante incentivar a autoestima do paciente. O fisioterapeuta já vê diferença no Saulo que iniciou o tratamento e o paciente de agora, que já “usa cordão e está se cuidando mais. Pedimos até para ele criar um instagram, para inspirar outras pessoas”.
Planejamento - Esse tratamento diferenciado é prioridade no CIIR. Segundo a gerente assistencial do Centro, Paola Reys, as diretrizes institucionais valorizam qualidade, ética e segurança. Especificamente em relação ao Saulo, ela informa que a assistência foi planejada de forma criteriosa devido à complexidade e raridade da situação.
“A equipe assistencial se envolveu de forma sistemática e traçou o plano de trabalho após conhecer sua história e quadro clínico, e percebeu que a autonomia que ele desejava seria possível, com bastante treino e cuidado. Hoje, vemos com muita alegria e emoção os avanços que ele apresenta. E temos certeza de que muitas conquistas ainda virão”, ressalta a gerente.
E entusiasmo não falta. Saulo já sonha alto, com um projeto ainda não iniciado no Centro, mas que promete fazer a diferença na rotina dele: aulas de canoagem para pessoas com deficiência. Ele diz que “gostaria de conseguir fazer e, quem sabe, ficar praticando. Antes eu não praticava nada. Quem sabe até viro profissional?”.